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terça-feira, 15 de novembro de 2011

A carta da paixão



Esta mão que escreve a ardente melancolia

da idade

é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,

que à imagem do mundo aberta de têmpora

a têmpora

ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra

a sua queimadura desde os seus recessos negros

onde

se formam

as estações até ao cimo,

nas sedas que se escoam com a largura

fluvial

da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas

e o silêncio todo branco.

Os dedos.

A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua

alumia-se. O mel escurece dentro da veia

jugular talhando

a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se

a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas

obscuras, a lua

tece as ramas de um sangue mais salgado

e profundo. E o marfim amadurece na terra

como uma constelação. O dia leva-o, a noite

traz para junto da cabeça: essa raiz de osso

vivo. A idade que escrevo

escreve-senum braço fincado em ti, uma veia

dentro

da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta

da figura cavada

no espelho. Ou ainda a fenda

na fronte por onde começa a estrela animal.

Queima-te a espaçosa

desarrumação das imagens. E trabalha em ti

o suspiro do sangue curvo, um alimento

violento cheio

da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força

desde a raiz

dos braços a força

manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda

fechada, a límpida

ferida que me atravessa desde essa tua leveza

sombria como uma dança até

ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma

estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum

astro

é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros

do teu vestido.

As palavras que escrevo correndo

entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,

arterial.

E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.

A paixão é voraz, o silêncio

alimenta-se

fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te

toda

no cometa que te envolve as ancas como um beijo.

Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem

nos quartos.

É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a

entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel

relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta

pelo meio

o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras

um pouco loucas

engolfadas, entre as mãos sumptuosas.

A doçura mata.

A luz salta às golfadas.

A terra é alta.

Tu és o nó de sangue que me sufoca.

Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões

da madeira fria. És uma faca cravada na minha

vida secreta. E como estrelas

duplas

consanguíneas, luzimos de um para o outro

nas trevas.


Herberto Helder, PHOTOMATON & VOX