Aldeia |
recordo os abraços de mãe
nas noites de trovoada
e de lhe perguntar se aquela chuva toda
ia inundar o mundo.
recordo aquela manta que servia toda a família
quando chegava a hora da novela.
e aqueles passeios pelo campo
sem destino ou direção.
as lareiras iluminavam as noites
de cheiro a madeira queimada,
a escuridão combatia-se com a luz fraca
dos candeeiros da rua.
e nós cantávamos canções,
dizíamos boas noites aos avós e tios,
e depois mergulhávamos nos lençóis gélidos.
ao nascer do dia
seguíamos em excursões sem fim,
prometendo a nós próprios desbravar o mundo.
e o mundo era aquele campo de milho,
a ribeira e os sapos,
as pinhas (que aqueciam a casa)
e as amoras (que davam para fazer geleia).
recordo as incursões ao rio
e de como invejava o miúdo
que nadava até uma pedra.
tão distante como daqui à lua, julgava eu.
recordo os dias de feira,
das galinhas, patos e perus.
recordo aqueles homens e mulheres
com as linhas da mão sujas
pelas enxadas que trabalhavam a terra
e pela lenha que tinham de cortar
para vencer o frio.
vivia-se com pouco,
mas vivia-se com um sorriso.
agora parecem memórias distantes,
impossíveis de repetir.
resta este poema
e a alegria de saber
que tudo isto existiu
— a memória deixa assim
de morrer comigo.
Rodrigo Ferrão