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quinta-feira, 18 de junho de 2020

É um poema... apenas!

CANTA
Atreve-te a julgar. Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza. Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções, não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer. Os teus dentes estão
lavados, as tuas mãos são amáveis, mas falta-te decisão
nos passos e firmeza nos gestos. Procura-te. Tenta encontrar-te
antes que te agarre a voracidade do tempo. Faz as coisas com
paixão. Uma paixão irrequieta, que não te dê descanso
e te faça doer a respiração. Aspira o ar, bebe-o com força,
é teu, nem um cêntimo pagarás por ele. Quanto deves
é à vida, o que deves é a ti mesmo.
Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência com que crescem
as árvores, canta cada momento que partilhas com amigos,
e cada amigo como um astro que desperta
no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor.
E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria. A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros
os séculos passados e os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida, talvez beleza, orgulho,
pedaços de prazer. A estrela que contemplas talvez já não
exista, quem sabe?, o que te ajudou a ser vida
de quantas vidas precisou. Canta!
Se sentires medo, canta.
Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta. Constrói o teu amor,
vive o teu amor, ama o teu amor. De tudo
o que as pessoas querem, o que mais querem é o amor.
Sem ele nada nunca foi igual, nada é igual,
nada será igual alguma vez.
Canta.
Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança.
E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e porque gostas
de cantar e porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso. Canta
porque és livre. E canta se te falta
a liberdade.

Joaquim Pessoa , in Vou-me Embora de Mim
(Litexa, 2002)